O que aprendemos sobre empatia, solidariedade e comunidade com o “V for Vera”
- Gisele Fontes
- 20 de dez. de 2018
- 7 min de leitura

Vera Souschek é uma encantadora jovem de 16 anos, com dupla nacionalidade, portuguesa e alemã, que, como seus outros quatro irmãos, estuda na escola alemã de Lisboa. O sistema de ensino alemão é peculiar. Nele, os dezesseis estados alemães têm competência em matéria de educação e cultura, mas há algumas medidas gerais federalizadas. Uma delas é a de que os alunos devem permanecer no sistema educacional por um mínimo de nove anos, mas em algumas regiões, este limite mínimo se estende para dez anos.
Esses nove ou dez anos mínimos se encontram divididos em duas etapas. A etapa Primária (Grundschule), de quatro anos, que inicia aos seis anos logo após o jardim de infância (Kindergarten) e a etapa Secundária I, que tem duração mínima de cinco anos e inicia aos dez anos, quando os estudantes são separados em três tipos de colégios com certificações distintas (Gymnasium, Realschule e Hauptschule), de acordo com o nível acadêmico (?!?!?!) que apresentem, existindo também escolas que integram os três certificados (Gesamtschulen). É esse o caso da escola de Vera.
Vera estuda na mesma escola desde sempre, desde a etapa primária. Por acordo entre escola e família, o currículo de Vera possui algumas adaptações de conteúdo, justificadas pelas suas especificidades de aprendizagem. Pois bem, em 2018, aos 16 anos, Vera está concluindo o nono ano. Em 2019 deveria cursar o décimo ano nesta escola, iniciando um novo ciclo para receber a certificação Hauptschule.
Deveria. Há alguns dias seus pais foram chamados à escola e, em sentido inverso ao acordado por todos os anos anteriores, foram informados que Vera não poderá cursar o décimo ano. Lhes disseram que ela pode, inclusive, permanecer na escola, mas apenas para repetir o nono ano, até completar 18 anos, quando deverá sair, ou seja, pode permanecer em 2019 e 2020, mas apenas repetindo o nono ano.
Sem cursar o décimo ano, Vera não recebe o certificado, burocracia essencial para que avance à próxima etapa do sistema de ensino. Se não receber o certificado, não recebe o grau, é como se nunca tivesse cursado todos esses anos.
Segundo Marcelina Souschek, mãe de Vera, a escola argumentou que Vera não atingiu o nível que deve ser alcançado por todos os alunos para progredir para a próxima etapa do sistema educacional alemão; a Diretora afirmou que está cumprindo uma diretiva alemã que, caso não seja cumprida, implicará em uma fiscalização à escola que lhe retiraria a autorização de passar aos alunos futuros diplomas de décimo segundo ano. Em entrevista ao jornal português Diário de Notícias, Marcelina informou que “Quase no fim do percurso ela vai ter de sair, porque não atingiu o nível que eles acham que os miúdos têm de ter para passar para outro ciclo. Mas a Vera não cabe nisso, senão ela nem podia ter feito o 5.º ano, porque há coisas do 5.º que ela não sabe. Ela tem um programa próprio, porque é uma miúda com deficiência. Tem um programa dela e a inclusão permite que ela vá acompanhando o grupo com o nível dela."
Trocando em miúdos, por todos os anos a escola permitiu a adaptação de conteúdo curricular e, inclusive, forneceu professor auxiliar. Essas eram as regras do jogo. E aos 40 minutos do segundo tempo, as regras do jogo estão sendo alteradas unilateralmente. Agora, para prosseguir na escola, Vera precisa dominar o conteúdo sem adaptação.
Há duas considerações que se impõem neste momento. A primeira é que se, de fato, o sistema educacional alemão só concede certificação para quem domina todo o conteúdo programático, porque permitiram que uma aluna prosseguisse por tantos anos com adaptação curricular, para não receber o grau ao final? A segunda e mais relevante consideração é - o sistema educacional alemão, sendo a Alemanha signatária da Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, pode negar adaptação curricular e certificação a um estudante?
O que a escola pretende é promover o apagamento da existência de Vera enquanto estudante regular do sistema de ensino alemão, isso sim. A pretensão da escola ofende Vera em sua dignidade, enquanto pessoa com síndrome de Down, porque viola as garantias consagradas na Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, Tratado de Direitos Humanos do qual os Estados de Portugal e da Alemanha (e também o Brasil) são signatários. Sim, Vera tem síndrome de Down. E sua dignidade e cidadania estão ameaçadas de violação, em razão da sua condição. O que está acontecendo com Vera acontece também no Brasil, o tempo todo. O que a situação de Vera nos acrescenta é a percepção de que esse movimento é global, porque o capacitismo, que é o preconceito e discriminação contra as pessoas com deficiência, também o é. Então o “caso Vera” nos permite dimensionar corretamente o quão estrutural e estruturante o capacitismo se apresenta nas sociedades modernas e o quanto se institucionaliza. É todo um sistema de ensino estruturado de forma excludente, atuando contra a pessoa com deficiência, lhe negando qualquer oportunidade. Por isso o capacitismo é estrutural. E essa estrutura capacitista molda as instituições, por isso é institucional. Há muito a dizer sobre o quanto todo o acontecido com Vera tem a nos ensinar sobre capacitismo estrutural, estruturante e institucional. Certamente também falaremos sobre isso. Mas, nesta postagem de hoje, queremos destacar o quanto o “caso Vera” também nos ensinou sobre comunidade, empatia e solidariedade.
Assim que a família foi comunicada da decisão da escola, Marcelina compartilhou o acontecido em sua página pessoal no Facebook e, em seguida, teve início um movimento espontâneo dos estudantes da escola em apoio a Vera, exigindo sua permanência e sua continuidade com a turma pelo décimo ano. Cerca de oitenta estudantes criaram o “V for Vera”, em que se propunham a pintar um V no rosto nos intervalos das aulas, para expor sua posição. Rapidamente o movimento também se espalhou pelos amigos, conhecidos, familiares, encontrando eco até mesmo entre desconhecidos, que reconheceram a iminência da absurda violação de direitos.
O “V for Vera” representa uma reação da sociedade contra o capacitismo. Muitos se juntaram ao movimento por solidariedade. Outros se juntaram por empatia. Mas o que mobilizou os estudantes da escola de Vera foi algo que está para além da empatia e da solidariedade, algo que não diz respeito ao outro, mas que diz respeito ao grupo.
A reação dos estudantes e todo o movimento desencadeado pela comunidade acadêmica só foi possível porque os mesmos reconhecem Vera como membro da comunidade. E este reconhecimento só é possível porque Vera também os reconhece igualmente como tal, já que o convívio na diversidade lhes possibilitou a construção de uma identidade coletiva diversa, razão pela qual, para todo o grupo, não faz o menor sentido que um de seus membros seja segregado por um sistema que deve servir a todos.
Ao se reconhecerem como membros de uma mesma comunidade, o que atinge Vera também atinge todo o grupo da mesma forma. Não é necessário que as pessoas se coloquem no lugar da Vera para que sintam a violação, pois já a sentiram enquanto elas mesmas, em seu direito à existência em diversidade, razão pela qual, o movimento “V for Vera” não diz respeito apenas à solidariedade e à empatia, mas diz respeito à auto-defesa de uma comunidade que exige o respeito ao seu direito à diversidade.
Retirar Vera da escola, negar o registro de sua vida estudantil, toda essa violência pretende mandar uma mensagem, a de que pessoas com deficiência não têm direito às escolas regulares. O que se pretende com essa mensagem é que outras famílias de estudantes com síndrome de Down nem tentem matricular seus filhos por lá. E sem novos estudantes com deficiência, os futuros grupos de estudantes sequer terão oportunizado o convívio que lhes permite perceber que não há distinção, que todos são unicamente seres humanos. E assim os estudantes com deficiência voltarão a ser “os outros”, os que são diferentes daqueles que têm direito ao ambiente escolar.
Quando isso acontece, quando as pessoas com deficiência são reduzidas a “eles” transformadas em “outros”, ou seja, quando ocorre o seu apagamento, invisibilização e isolamento, ficamos sem condições de confirmar se o que dizem sobre “eles” é procedente. E é neste ponto que qualquer falácia usada para justificar a segregação das pessoas com deficiência soará plausível, já que, sem o convívio, só resta o estranhamento sobre “o outro”. Então se estão dizendo que “o outro” não pertence a este lugar, se toda a escola está estruturada sobre a falsa premissa de que nela não há, naturalmente, lugar para esse outro, e se o “nós” desconhece o “outro”, que por isso lhe é estranho, como é que o “nós” vai perceber que essas premissas são falsas?
E assim o capacitismo se mostra estruturante, além de estrutural. Porque ele prepara o caminho para a sua reprodução dentro de cada um de nós. Primeiro apaga a existência, invisibiliza, isola, segrega, exclui, distingue, nega, veda. Depois, criado o estranhamento, legitima e naturaliza o apagamento, a invisibilidade, a segregação, a discriminação, a exclusão, tornando-se intrínseco em cada um de nós, porque legitimado e naturalizado.
O antídoto já sabemos, os estudantes do “V for Vera” nos mostraram, o antídoto é o convívio na diversidade. É este convívio que contém em si todo o esclarecimento sobre as falácias que sustentam a discriminação contra as pessoas com deficiência. É esse convívio que contém a verdade da diversidade, por isso é tão ameaçador. Porque nele está contida toda a força transformadora que encontramos forjada em uma comunidade diversa.
O desfecho dessa história está agora nas mãos do Ministério da Educação alemão, que decidirá sobre o caso. O movimento “V for Vera” sofreu uma desmobilização já no seu primeiro dia, quando a Diretora da escola informou à comunidade acadêmica que tudo não passava de um mal entendido, porque Vera poderá permanecer na escola. O que não foi dito é que ela poderá permanecer apenas e eternamente no nono ano. No entanto, essa desmobilização não reduz a importância e o sentido que atribuímos ao movimento. A reação está lá, em estado de latência, pelo sentido da coletividade. É esse o caminho.
Descrição da imagem: Menina com Síndrome de Down, de óculos e com os polegares virados para cima, sob uma mesa com um livro aberto e com um quadro negro com escritos em alemão ao fundo.
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