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Especial é a mãe, por Ana Laura Prates Pacheco

  • Gisele Fontes
  • 12 de mai. de 2019
  • 10 min de leitura

Nesse dia das mães, meus votos são para que possamos construir uma sociedade menos desigual no plano dos direitos, que leve em conta a diversidade das condições e dos desejos.

Há quase 20 anos me tornei mãe, e minha estreia no planeta maternidade se deu através do nascimento do Gabriel, que tem deficiência intelectual em razão da trissomia do cromossomo 21, mais conhecida como Síndrome de Down. Um ano e pouco depois, a experiência da maternidade foi ampliada com o nascimento da Luiza, que segundo a bióloga do laboratório responsável pelo exame genético realizado durante a gestação, é uma menina normal. Lembro-me de ter perguntado, brincando: “Isso existe, menina normal?”

Durante esses anos, apesar de minha discreta militância pela causa da inclusão de pessoas com deficiência, e da participação quase contínua em grupos de pais de pessoas com Síndrome de Down, eu nunca havia sido convidada, até poucos dias atrás, para falar a partir da condição de mãe.

Quando o Gabriel nasceu, eu dava aulas na Universidade, e uma das disciplinas tinha o terrível nome de Psicologia do Excepcional. Evidentemente, eu não fazia outra coisa a não ser desconstruir aquele conceito. Em nenhum momento da minha carreira pensei em orientar meus temas de estudo em função de ter um filho com deficiência. Mas confesso que, de uns tempos pra cá, tenho trazido a público algumas faces de minha relação com meu filho que considero relevantes e que acho importante compartilhar, e não imaginava os efeitos que isso provocaria e o quanto esse assunto ainda é um tabu em nossa sociedade.

Jamais poderia imaginar, tampouco, que os ventos mudariam de direção, e que os direitos de pessoas com deficiência, conquistados a duras penas nos últimos anos, estariam tão ameaçados de retrocesso com agora se encontram. O convite do “Pensando nisso” talvez tenha sido uma interpretação de uma necessidade e um desejo de finalmente falar mais sobre isso.

Convocada a pensar nisso, me dei conta de como é incrível constatar o quanto os ideais em torno da maternidade ainda estão presentes em nossos dias. “Só quero que meu filho seja perfeito!” Essa frase tão contraditória costuma ser dita com frequência quando estamos esperando um bebê. “Só” perfeito? Sequer percebemos que, no fundo, estamos confessando um desejo que dificilmente declararíamos de modo tão explícito em outra situação. Não diríamos assim, sem mais nem menos: só quero que meu corpo seja perfeito, só quero que minha vida seja perfeita, só quero que meu casamento seja perfeito.

Mas quem seria capaz de recriminar uma mãe por querer o melhor para um filho? O que não enxergamos é que por trás desse voto de perfeição, há um peso enorme que vai sendo carregado, com boas pitadas de culpa, bem como um baita narcisismo camuflado de altruísmo materno. Meu produto não será nada mais, nada menos do que perfeito! É claro que essa idealização toda não tem como se sustentar por muito tempo, e cada novo nascimento, cada relação filial e maternal irá necessariamente derrubá-la, mais cedo ou mais tarde.

A história da invenção dessa idealização já foi desvendada por vários estudiosos. A historiadora francesa Elizabeth Badinter escreveu um livro chamado “Um amor conquistado” no qual demonstra, através de uma extensa e rigorosa pesquisa, que o mito do instinto materno que geraria um amor universal e incondicional é uma invenção das sociedades ocidentais modernas pós-industriais. O fato de que o amor materno não seja natural, mas cultural, não o torna, entretanto, menos verdadeiro, pois somos humanos justamente por sermos seres de linguagem e, portanto, sociais e históricos. O problema é que essa suposta natureza materna ideal gera um peso enorme para as mulheres que se tornam mães.

Pois então pensem no que acontece quando o nascimento é um susto e esse ideal de perfeição despenca de uma hora pra outra, sem amortecimento? É o que ocorre com frequência quando nasce uma criança com deficiência. Para além de todas as preocupações em relação à sobrevivência, saúde e bem estar do bebê, há algo muito mais complexo que envolve todas as expectativas depositadas na relação mãe e filho, que por sua vez, atualizam a relação da mãe com sua própria mãe.

A esse respeito, Freud, o inventor da Psicanálise, descobriu uma coisa muito interessante: toda relação de amor envolve uma complexa dialética entre amar e ser amado, ou seja, entre ser o sujeito ou o objeto do amor. Por uma série de fatores muito complexos, dentre eles evidentemente os fatores culturais dos quais falamos acima, para algumas mulheres é muito importante encontrar uma sustentação psíquica no fato de serem amadas. Mas, curiosamente, na maternidade, elas podem sair dessa posição e experimentarem o lugar de prover amor, e de sentirem que alguém precisa desse amor para sobreviver e se desenvolver.

Alguns anos depois, Lacan enfatizou que essa duplicidade entre a mulher e a mãe, é fundamental para a constituição do psiquismo do bebê. Ao contrário do que se possa imaginar, a criança precisa do amor materno, mas esse amor não pode ser incondicional; ao contrário, ele precisa estar presente, com a condição de que a mãe – que na verdade pode ser qualquer pessoa que ocupe essa função, independente do sexo biológico – também possa desejar outras coisas, ou seja, que ela não seja apenas mãe, mas não esqueça que é também uma mulher. É o que o faz afirmar que a função materna se exerce apenas pelos cuidados dispensados, mas, sobretudo, por suas faltas.

Para a Psicanálise, a maternidade tem dois aspectos: um é aquele mais visível, que faz com que as mulheres grávidas se sintam especiais, meçam barrigas e conhecimento sobre cuidados, falem sem pudor de seus votos para o bebê, e deixem a todos em volta encantados com o poder adquirido pelo fato de estarem gerando uma nova vida. O lado mais difícil desse aspecto é o do aumento da responsabilidade e da cobrança, e o medo da decepção e de não estar à altura do exercício desse poder, o que pode, inclusive, gerar estados depressivos ou de angústia em muitas mães de primeira viagem.

Há, entretanto, outro aspecto mais sutil e mais íntimo que diz respeito às fantasias que cada uma constrói em relação à maternidade e ao ser mulher. Ambos os aspectos podem ser afetados quando do nascimento de uma criança com deficiência, sobretudo em uma sociedade como a nossa, que privilegia a individualidade, estimula a competitividade, e que valoriza o desempenho e a capacidade acima de tudo.

Minha aventura de ser mãe de um menino com Síndrome de Down começou apenas na manhã seguinte de seu nascimento, quando um pediatra plantonista que eu nunca tinha visto antes entrou no quarto e, sem a menor cerimônia, tato e respeito, simplesmente me pediu para assinar a guia do convênio que solicitava a presença de um geneticista, pois meu filho tinha características sindrômicas. “Você não percebeu nada?” Não, não percebi. Como chamaríamos isso, já que não podemos mais falar em violência obstétrica? Violência puerperal? Quando ele voltou com a guia, perguntei de que síndrome ele suspeitava.

Síndrome de Down? Sim. A resposta, paradoxalmente, me aliviou. E curiosamente, junto com o alívio estranho e deslocado, senti preguiça. Justo agora que eu ia virar uma “mãe de família” parecia que as bandeiras mofadas teriam que ser retiradas do armário, e que a luta continuaria, desta vez por toda a vida!

Em minha experiência como mãe de um jovem com Síndrome de Down, já ouvi um pouco de tudo. Quando o Gabriel era bebê e passeávamos de carrinho pelo bairro, era frequente ser interpelada por senhoras bem intencionadas que me perguntavam se ele tinha problema.

Nos dias bons eu me calava com um sorriso amarelo, nos ruins eu respondia que quem tinha problema eram elas. A coleção de falas preconceituosas é grande. Uma escutou do primo do seu segundo marido – padrasto de seus filhos: “Não sei se eu teria a coragem que ele teve de segurar essa barra”. A barra, no caso, era o fato de ela ter um filho com Síndrome de Down. O fato de que o marido também tinha filhos e de que ela também havia segurado várias barras dos enteados, naturalmente era irrelevante, pois era de se supor que ela não fazia mais do que a obrigação. Dificilmente um homem escutaria algo semelhante, o que revela ainda outro elemento pouco comentado, mas que tem um peso enorme: o machismo. Mesmo atualmente é muito mais comum a presença de mães nos grupos de apoio ou de convivência de pais de crianças e jovens com deficiência. No âmbito público, há vários estudos que mostram que são as mães que correm com seus filhos pra lá e pra cá em busca de tratamento e atendimento.

No campo dos preconceitos, não podemos esquecer as escolas que se recusavam a aceitar matrícula e que até hoje não cumprem o dever legal de oferecer plena acessibilidade, os médicos que tratam disfunções severas com descaso, a falta de assistência generalizada, etc. É preciso reconhecer, com efeito, que no plano da lei e também no dos costumes, houve um grande avanço no Brasil nas últimas décadas, certamente por um esforço coletivo de muitos, e por medidas governamentais e do poder público que levavam em conta a inclusão da diversidade em vários âmbitos. Avanços que agora se encontram novamente em risco com o desmonte que vem sendo promovido pelo atual governo, inclusive com a extinção, dentre outros, do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência pelo decreto 9.759/2019 e com as propostas da reforma da previdência que afetam diretamente as pessoas com deficiência.

Há, entretanto, o outro lado mais sutil do preconceito que é a condescendência que pode também aparecer transfigurada de benevolência, pena, ou até mesmo exaltação. Além dos preconceituosos convictos, há também aqueles que nos regalam com palavras de consolo e perdão. Frequentemente sofro abordagens me explicando que o Gabriel é um anjo, que fui escolhida por Deus, ou que tenho uma missão. O mais comum é escutar que sou uma mãe especial, porque tenho um filho especial! Essa sentença vem como uma espécie de prêmio de consolação, invertendo o sinal negativo e declarando, implicitamente que eu, na verdade, deveria me sentir privilegiada por ter um filho com deficiência. Uma bênção, ao invés de uma maldição.

O mais interessante, e esse é o ponto principal a ser aqui destacado, é que tanto a posição que enfatiza o déficit, quanto a que procura ser condescendente revelam dois lados da mesma moeda, a moeda do individualismo que joga toda a responsabilidade do “problema” na família “especial” e, mais especificamente, nas costas da mãe. É curioso que não se considere que as questões que dizem respeito à diversidade humana, incluindo suas limitações, disfunções e declínios devido ao passar do tempo (voltamos à Previdência) é uma questão coletiva, cujo tratamento deveria ser, sobretudo, na esfera pública.

Em que pesem as especificidades e eventuais dificuldades privadas e particulares que implicam ter um filho com deficiência, é inegável que uma sociedade que levasse em conta a pluralidade, que respeitasse a diversidade no plano da lei, que defendesse políticas de acessibilidade e inclusão diminuiria sobremaneira o impacto narcísico do nascimento de uma criança com deficiência na subjetividade da mãe. Somos feitos de discursos e muitas vezes os discursos têm um peso maior do que os fatos em si, quando não o determinam de modo implacável.

Esse é um aspecto bastante sensível, que muitas vezes afeta os próprios movimentos que militam em prol da inclusão, frequentemente sem levar em conta outros aspectos políticos da desigualdade. O discurso do capacitismo bem como o ideal individualista de autonomia, acaba por dar a falsa impressão de que o bom desempenho dos filhos com deficiência depende única e exclusivamente do esforço de mães guerreiras e lutadoras que, contra tudo e contra todos, transformam seus filhos em sobreviventes, ou na melhor das hipóteses, em super-heróis deficientes, exemplos de esforço e superação.

Mas há também vários casos de mães que se abrem para a dimensão mais ampla pela qual somos atravessadas quando temos um filho com deficiência. Mães que, a partir de sua experiência particular, são tocadas pela lógica do coletivo e compreendem que, se há luta, ela deve se dar no plano político. Lembro-me de, há muitos anos, em uma das tantas salas de espera que fazem parte de nossa rotina, ter comentado algo a respeito da parada LGBT que ocorreria naquele final de semana com outra mãe bastante militante em favor da inclusão escolar. Ela me respondeu que não aceitava a parada: “Sou muito família”.

Argumentei que não via incompatibilidade entre orientação sexual e família e perguntei: “e se seu filho fosse gay, assim como sua filha tem Síndrome de Down, você não iria?” Essa pergunta revela o cerne do problema. Será que só deveríamos nos engajar em causas que nos dizem respeito pessoalmente? Só podemos militar em causa própria? A boa notícia é que há poucos meses nos encontramos por acaso. Conversa vai, conversa vem, trocando figurinhas a respeito da vida social de nossos filhos jovens, e ela me conta, muito contente, que a melhor amiga de sua filha é uma jovem transexual. Essa mudança de posição é fundamental para a construção de um mundo em que não seja preciso lutar para que nossos filhos, com ou sem deficiência, sejam o melhor dos iguais.

É por isso que não me sinto uma lutadora. Lutadoras são as mães das comunidades cariocas que têm que sair de casa para trabalhar sabendo que seus filhos podem ser abatidos por tiros de helicóptero da polícia de um Estado que deveria protegê-los. Lutadoras são as mães que exigem o reconhecimento e a punição pelo assassinato de seus filhos na periferia de São Paulo. Lutadoras são as trabalhadoras rurais que exigem terra para plantar e colocar comida no prato de seus filhos. Lutadoras são as índias, que defendem a terra, sem a qual nenhum de nossos filhos verão o futuro.

Mas também não sou um “problema”, nem uma “barra” pra ninguém só porque tenho um filho com deficiência; ao contrário, tenho certeza de que a convivência com a diversidade é algo fundamental para todos os envolvidos, tanto em nível familiar quanto em nível público. Sinto-me uma mãe privilegiada, por minha condição social e econômica, e simplesmente tento me virar para respeitar meus filhos com suas diferenças: o jovem rapaz com Síndrome de Down e a jovem “menina normal”.

Nesse dia das mães, meus votos são para que possamos construir uma sociedade menos desigual no plano dos direitos, que leve em conta a diversidade das condições e dos desejos, e que não tenha como ideal a autonomia de ninguém, pois todos nós dependemos mutuamente uns dos outros e, na melhor das hipóteses, cada vez nos tornaremos mais dependentes, na medida em que formos envelhecendo. Uma sociedade em que seja possível ceder privilégios pessoais, em favor de um bem comum.

Ah! Já ia esquecendo. Se eu sou especial? Ora, porque será que é tão difícil lidar com as imperfeições, se elas são a regra e não a exceção? Sempre pensei e não falei, mas hoje vou falar. Especial? Especial é a mãe!

*Matéria originalmente publicada em 11/05/2019 neste link.

 
 
 

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