O impacto do sono na disposição, crescimento, memória, aprendizagem e fala das crianças com T21.
- Erica Coelho ( CRM - RJ 5291871-7)
- 26 de fev. de 2019
- 6 min de leitura

Em postagem anterior aqui no Comuna Diversa, Rogério Lima já abordou a questão do sono, ou dos distúrbios do sono, quando associados à síndrome de Down.
A relevância do assunto e de seus desdobramentos nos trazem de volta ao tema, que certamente será objeto de muitas outras postagens futuras.
O sono é um aprendizado progressivo que ocorre durante todo o primeiro ano de vida. No inicio é reflexo, o bebê se cansa e dorme. Com o passar dos meses esse reflexo é suprimido e o sono passa a ser “treinado”, isso inclui a criança e a família. Sem dúvida os maiores inimigos do sono regular nessa fase sāo “excesso de cansaço” ou “falta de rotina” e o “excesso de estímulos” (aqui faço um parênteses para nós, país que trabalham fora e chegam em casa ávidos para ajudar na estimulação do bebê com Trissomia do 21 (T21)).
Bebês precisam dormir muito, afinal ainda estão em formação. No primeiro mês o bebê dorme de 11 a 19 horas/dia, tanto de dia quanto de noite. Não existe um padrão de sono diurno/noturno, sendo comuns que bebês durmam melhor de dia do que à noite. Em regra acordam apenas para mamar e em outros pequenos períodos do dia, permanecendo acordados por 1 ou 2 horas. A duração de cada soneca varia, sendo que nos que recebem mamadeira a soneca é mais longa (que fique claro, amamentação exclusiva sempre que possível)
E aquela situação de bebês que trocam o dia pela noite… então … é tudo verdade.
No caso de crianças com T21, temos a cardiopatia presente em mais de 50% dos casos, internação em UTI neo natal em aproximadamente 40% dos nascimentos, refluxo gastro esofágico muito frequente e alergia à proteína do leite de vaca, entre várias outros circunstâncias que, quando presentes, interferem na dinâmica do sono desde o nascimento e podem afetar o “aprender a dormir”.
A essas questões soma-se a apneia do sono. Nessa fase já é possível notar pequenas pausas respiratórias ou de irregularidade nos períodos respiratórios. No entanto, o consenso científico estabelece que a pausa respiratória só deve ser considerada apneia se for maior que dez segundos. Tais pausas podem acontecer por imaturidade do Sistema Nervoso Central, mas também podem ser manifestação de alterações em outros sistemas, como a hipoglicemia, hipotermia, infecção ou mesmo a persistência de canal arterial. Aqui chamo atenção para novos pais, para que observem se o bebê está ultrapassando 4h em uma soneca. Após 3h sem acordar, eu já oriento a tirar devagar a roupa, as meias, e convidar o bebe ao seio. Um sono mais prolongado pode ser sinal de hipoglicemia.
Lema do primeiro mês - O Bebê dormiu ? Durma junto!!!!
De 2 a 6 meses ocorre progressivo predomínio do sono noturno (entre 9 e 10 horas), com duas ou três sonecas ao longo do dia, somando em média 4 horas de sono diurno, o que perfaz um total de 13 a 15 horas/dia. Temos o “dormir à noite toda” sem a intervenção dos pais para a amamentação, troca de fraldas ou ninadas. Cuidado para não atrapalhar esse período de aprendizagem. Por diversas razões, pode acontecer de um bebê, tenha ele T21 ou não, demorar mais para consolidar o sono noturno contínuo nessa fase, por questões como cólica do lactente, refluxo, obstrução nasal e principalmente por calor.
No caso de bebês com T21, uma característica sempre recorrente é a temperatura basal mais alevedada, em razão das caraterísticas metabólicas decorrentes dos genes triplicados no cromossomo 21, o que pode tornar o bebê muito calorento. E sabemos que dormir sentindo calor é impossível.
Não existem regras sobre o melhor local para o sono do bebê, ou local apropriado. Isso depende do contexto e da dinâmica familiar, mas, como regra geral de prudência, estabelecer uma rotina em que o bebê possa dormir em um local seguro, como um berço, próximo à cama dos pais, é interessante. Isso porque, apesar de ser uma delicia dormir agarrado com bebê, há que se levar em conta no cálculo da prudência o risco de sufocação, esmagamento, quedas e pequenos acidentes.
É preciso considerar, também, que há riscos envolvidos na decisão de por o bebê para dormir em um quarto sozinho desde cedo, como por exemplo o risco do engasgo noturno. Some-se a esses riscos o fato de que ninguém merece vagar pelos quartos a noite inteira.
Assim, desde que respeitados os contextos e dinâmicas familiares, parece ser uma boa regra de prudência recomendar que nessa fase o bebê durma em um berço no mesmo quarto de seu(s) cuidador(es).
Nesse período as apneias centrais tendem melhorar gradativamente pela maturação do sistema nervoso e, dependendo da situação, é possível que já se iniciem as apneias obstrutivas.
Dos seis meses aos 2 anos mais de 80% dos bebês dormem a noite toda. Nesta fase a maior dificuldade é iniciar o sono. Alguns bebês desenvolvem ritos para espantar o sono. Os mais comuns são: coçar a cabeça, os olhos, puxar a orelha ou esfregar o rosto; rir ou buscar estímulos externos, basicamente procurando um adulto que brinque e o estimule para espantar o sono; chorar logo que dormir ou fechar os olhos; iniciar a clássica birra de dormir; hiperatividade (se parar, dorme).
Observe quando a criança estiver cansada para garantir que em dias de maior cansaço a criança não durma menos do que deveria. Dormir de menos tem consequências - irritabilidade, birras, perda de apetite, impaciência e hiperatividade.
Entre as famílias de crianças com T21, com muita freqüência os pais relatam um sono mais tranquilo (sem rolar no berço) durante o dia do que de noite. Esta situação pode estar relacionada a um refluxo gastro esofágico mais intenso à noite em bebês que recebem mamadeiras noturnas ou que ingerem muito liquido após jantar ou à hipertrofia de adenóides e amígdalas que, nesse caso, fazem com que a criança não consiga entrar em sono profundo adequadamente, causando microdespertares.
A elevada ocorrência de refluxo gastroesofágico (inclusive o oculto), entre bebês com T21 e a hipertrofia de adenoides e amígdalas, associada às passagens mais estreitas que caracterizam a estrutura anatômica da face nas pessoas com T21, tornam muito comum que haja agitação durante o sono noturno entre as crianças com síndrome de Down.
E esses distúrbios no sono geram cansaço diurno. E o cansaço diurno excessivo me preocupa bastante. A equação é simples : sono intranquilo = disposição diurna prejudicada.
Nem toda as vezes que a criança acorda é por fome. Caso a alimentação noturna seja imprescindível, nos casos dos bebês com T21 é importante investigar a ocorrência de refluxo, pois, se for este o caso, é necessário evitar grandes volumes muito liquefeitos. Além do refluxo, há ainda os resfriados, as alergias alimentares (principalmente ao leite animal) e as apneias ( que podem ser mistas, centrais ou obstrutivas). Todas essas situações, somadas à estrutura anatômica da face, com condutos muito estreitos que dificultam a drenagem das secreções, favorecem a ocorrência de situações respiratórias nas crianças com T21.
E por todas essas situações, o sono é uma situação associada à síndrome de Down como uma questão relevante. A situação sempre me chamou atenção, pois é uma queixa frequente em quase 100% dos familiares.
E a questão envolve outras situações para além da disposição diurna e dos desdobramentos patológicos do refluxo gastroesofágico e das complicações respiratórias, como por exemplo, a desregulação da excreção do hormônio do crescimento, a maior dificuldade na consolidação da memória e do aprendizado, que dependem de uma adequada organização dos segmentos do sono, e até distúrbios de fala.
Todas as fases de estirão de crescimento da criança estão relacionados ao aumento da necessidade do sono, seja devido à secreção do hormônio do crescimento ocorrer durante o sono, seja por maior necessidade de repouso, (aumento do metabolismo relacionado ao crescimento).
E o que a fala tem a ver com o sono? Uma revisão científica pode nos esclarecer. Nesta recente revisão, pesquisadores brasileiros correlacionaram o atraso na fala com as apneias do sono. Leia o resumo da publicação:
“Crianças e adolescentes com Apneia Obstrutiva do Sono (AOS) podem apresentar sonolência diurna, alterações de aprendizado, memória e atenção, que podem interferir na linguagem oral. O objetivo foi procurar publicações que correlacionassem as duas coisas. A conclusão desse estudo diz que “O diagnóstico e tratamento tardio de AOS resultam em alterações significantes na qualidade da aquisição verbal. Torna-se imprescindível a atencão dos profissionais que atuam com a população infantil para este aspecto, uma vez que grande parte dos sons da fala são adquiridos entre 3-7 anos, que corresponde ao período de pico de ocorrência de hipertrofia adenoamigdaliana e AOS na infância.”
Portanto, considerando que além das apneias centrais e obstrutivas, há outras situações de alteração do sono muito frequentes na T21, como alergia à proteína do leite de vaca ou outras alergias alimentares, refluxo etc, torna-se mandatório que os profissionais estejam atentos para intervenção precoce após exaustiva investigação das causas do sono intranquilo, lançando mão dos recursos disponíveis para a investigação, como a Polissonografia, Nasofibroscopia, RX de cavum e, o mais importante, o bom e velho exame clinico e anamnese detalhados. Descrição da imagem - Menina de três anos (e sua boneca de idade indeterminada) realizando polissonografia.
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