As consequências do “novo” modelo de alfabetização anunciado pela Secretaria de Alfabetização do MEC
- Gisele Fontes
- 23 de jan. de 2019
- 5 min de leitura

Há alguns dias aconteceu a reunião pedagógica entre os pais de alunos e o corpo técnico e docente da escola onde minha filha Luisa, de 4 anos, estuda. Luisa tem síndrome de Down e está cursando em 2019 o primeiro ano da Educação Infantil.
Este será seu quarto ano na escola e, o fato de não ter sido necessário que suas professoras lançassem mão de estratégias individuais de aprendizagem nos três anos anteriores, em que cursou o Maternal I, o Maternal II e o Maternal III, não significa que o mesmo ocorrerá este ano. Por essa razão, tenho muito interesse na reunião pedagógica. Me interessa conhecer o método que será utilizado, compreender a dinâmica proposta para a sala de aula e, mais importante que tudo, perceber se na dinâmica proposta há espaço para a individualidade, para o trabalho com o aluno a partir da sua subjetividade.
Teoricamente minhas questões foram respondidas de forma satisfatória. A proposta pedagógica submetida à aprovação é assentada em três pilares: - Atividades contextualizados e significativas; - Criança como sujeito é protagonista; - Família como corresponsável.
Todos esses pontos ilustraram um slide apresentado aos pais dos alunos e detalhadamente explicado à plateia. Enquanto ouvia as explicações e era tomada por um sentimento de alívio, pois esses três pontos teoricamente garantem que não apenas as demandas específicas da minha filha, mas, de qualquer aluno, sejam tomadas em consideração no processo de aprendizagem, pensava no quanto de esforço e luta pela educação estavam representados ali, naquela imagem.
Todo um método de ensino estruturado a partir da compreensão de que o aluno é o protagonista do processo é algo que contém em si uma potência tão revolucionária quanto necessária. Dar significância e contexto às atividades é tornar o processo educacional algo comum, cotidiano, impedindo que qualquer estranhamento contamine a atividade e dificulte a aprendizagem. Reconhecer o papel e a responsabilidade da família no processo é dar voz às únicas pessoas que podem completar a visão integral sobre o aluno, tão essencial a qualquer processo de ensino.
Tecnicamente falando, a proposta pedagógica que me foi apresentada foi a de utilização do método construtivista de ensino, que tem o aluno como ator principal da construção do conhecimento a partir de atividades contextualizadas, de acordo com a realidade social de cada um. Nada mais adequado para uma vida em diversidade, o que beneficia a todos, sem exceção. Então, não se trata de um método que beneficia a minha filha apenas, se trata de um método que beneficia a todos. A sua relevância maior está no fato de ser um método que não EXCLUI minha filha do processo de aprendizagem.
Obviamente não tenho ilusões de que tudo será perfeito e de que a proposta pedagógica terá efetividade automática. Mas é essa proposta pedagógica que fundamenta a conduta da equipe escolar. Todas as etapas em sala de aula (e também fora dela) foram planejadas para atingir os objetivos propostos a partir desse método. Assim, tenho um fundamento, uma base para apontar e a que recorrer, se for necessário exigir uma correção de rota. Até porque minha exigência é uma possibilidade prevista na própria proposta pedagógica, que me confere a corresponsabilidade do processo educacional.
Assim, tudo o que vi e ouvi me deixou bastante tranquila. Por enquanto. Porque, no mesmo período em que aconteceu a reunião pedagógica, o novo Secretário de Alfabetização do MEC, Carlos Nadalim, anunciava, como política de Estado, um método pedagógico único de alfabetização. Para o ocupante desta nova secretaria do MEC, é justamente o método construtivista uma das principais causas do analfabetismo funcional no Brasil, razão pela qual o MEC passará a adotar, como método único de alfabetização, o método fônico.
A jornalista Mariana Schreiber, da BBC News Brasil, em detalhada matéria sobre o assunto, nos informa que: “Em um dos seus vídeos no YouTube, onde tem um canal com mais de 5 milhões de visualizações, o novo secretário Carlos Nadalim argumenta que o que chama de método construtivista "demonstra uma preocupação exagerada com a construção de uma sociedade igualitária, democrática e pluralista, em formar leitores críticos, engajados e conscientes". Por outro lado, diz na gravação, as diretrizes do Ministério da Educação (MEC) não trazem "uma orientação clara com base em evidências científicas comprovadas e atualizadas de como alfabetizar as crianças". "Há tanta preocupação em fomentar a socialização e em promover uma visão crítica na criança que resta pouco tempo e pouco investimento para ensinar o básico, o fundamental", conclui Nadalim, após criticar a educadora Magda Soares, professora emérita da UFMG tida como referência nacional em alfabetização. Para o novo secretário, o "letramento", conceito difundido no país a partir dos anos 1980 pela educadora e usado nos documentos do MEC, é o "vilão da alfabetização" no país. Como saída, Nadalim e outros adeptos da ênfase na fonética defendem o "método fônico". Nele, a criança deve primeiro ser exposta a atividades que reforcem a relação entre as letras e os sons da fala (grafemas e fonemas), pois assim aprendem a decodificar e codificar a linguagem escrita, para depois evoluir aos textos”.
A matéria completa da BBC News Brasil você pode ler aqui (e inclusive recomendamos a leitura, por se tratar de material riquíssimo em informações).
No entanto, a questão que quero levantar não se refere ao equívoco de atribuir a responsabilidade do analfabetismo funcional ao método, ou à compreensão distorcida que o Secretário de Alfabetização demonstra ter sobre os diversos métodos de alfabetização, ou mesmo sobre a realidade do país. O que quero enfatizar é o resultado de se estabelecer um método único a uma comunidade de alunos diversos.
Em uma entrevista concedida ao referido Secretário de Alfabetização, no blog pessoal do mesmo, o Prof. Fernando Capovilla, árduo defensor do método fônico, em um exercício de absoluta contradição, ao mesmo tempo em que defende que o método fônico é o “método mais indicado de alfabetização”, informa que para alfabetizar alunos com deficiência outros métodos devem ser acrescidos ao método fônico, no que podemos concluir que se o método fônico não é adequado para alfabetizar alunos com deficiência, ele não pode ser estabelecido como método único de alfabetização da rede pública de ensino, sob pena da exclusão de tais alunos. Em conclusão, o próprio defensor do método fônico admite que o mesmo, usado como único método, não é adequado à diversidade. E se o adequado é associar outros métodos em razão das individualidades de cada aluno, então vai por terra a justificativa para um método único.
O que ressalto aqui não é uma crítica ao método fônico, mas à adoção de um método único, estabelecido de forma genérica e prévia, sem levar em conta as especificidades do aluno.
E não se trata unicamente das especificidades contidas na dicotomia alunos com deficiência e alunos sem deficiência. É muito mais que isso. E se o aluno, com ou sem deficiência, apresentar questões de audição, mesmo que não seja pessoa com deficiência auditiva? E se houver, por exemplo, questões com o processamento auditivo (que são, inclusive, bem frequentes) ou com sensibilidade auditiva? Aqui é importante ressaltar que alteração no processamento auditivo não é o mesmo que perda auditiva. Sensibilidade auditiva então, nem se fala.
E se o método fônico não for capaz de aproveitar todo o potencial do aluno, mesmo que não haja questões auditivas? Como será possível exigir que o aluno tenha a oportunidade de conhecer outras estratégias de aprendizagem diante de uma definição contundente por um único método que, em si, é excludente?
E como é possível que se estabeleça um método de alfabetização absolutamente excludente como o único método a ser utilizado nas escolas públicas de todo o país? Seria o mesmo que retirar a acessibilidade da escola regular pública, tornando-a hostil ao aluno com deficiência ou mesmo ao aluno sem deficiência que não tenha todo o seu potencial obtido pelo uso do método fônico. Trocando em miúdos, o resultado é a exclusão.
Não é possível.
Então temos que resistir. E lutar para manter o direito de todos os alunos a um método de alfabetização acessível, que não as exclua do processo de aprendizagem.
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