“A indiferença também gera barbárie”. Diga não ao retrocesso.
- Gisele Fontes
- 22 de fev. de 2019
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O Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas a que nos referimos na postagem anterior, fruto do trabalho coletivo de inspeção realizado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal (PFDC/MPF), nos apresentou o seguinte cenário sobre a realidade da institucionalização no Brasil, atualmente:
- As instituições funcionam no modelo dos manicômios por manterem os pacientes presos. Ou seja, o padrão dos manicômios não foi abandonado, continua arraigado na prática institucional mesmo após a Reforma Psiquiátrica contida na Lei 10.216 de 2001, que proíbe a institucionalização de pessoas com sofrimento mental em instituições de caráter asilar, que têm como característica a privação da liberdade, flexibilizando esta proibição apenas em casos excepcionais. É esse modelo de funcionamento que permite a constante violação dos direitos das pessoas com sofrimento mental.
- Nos pouquíssimas hipóteses em que a legislação permite a institucionalização, há a exigência de laudo médico e notificação ao Ministério Público, porém apenas duas das 28 comunidades inspecionadas apresentaram laudo médico.
- A inspeção identificou várias instituições que mantêm os pacientes isolados, incomunicáveis, com restrição de visitas, com retenção de seus documentos e dinheiro e com a violação do seu direito à privacidade na comunicação.
- A Lei da Reforma Psiquiátrica também exige a assistência médica e psicológica às pessoas institucionalizadas, o que não acontece em grande parte dos abrigos inspecionados, onde há internos até mesmo sem documentos;
- A inspeção encontrou menores institucionalizados com adultos o que viola as regras do ECA. Também foi constatada a internação de idosos;
- Há flagrante desrespeito à diversidade sexual, com a institucionalização de pessoa transexual em abrigo do gênero oposto.
- A inspeção constatou que ainda há aplicação de castigos, abusos, maus-tratos, agressões físicas e situações análogas à tortura;
- As instituições cometem inúmeras irregularidades sanitárias, a falta de higiene é uma delas;
- Mesmo quando a internação é voluntária, muitos pacientes são impedidos de sair, o que transforma a sua presença no abrigo em internação involuntária;
- A laborterapia é simplesmente exploração de mão de obra, escravidão;
- 18 das 28 instituições inspecionadas recebem financiamento público, o que nos leva a constatar que este financiamento serve de estímulo e até mesmo funciona como objetivo último da própria existência dessas instituições, e não a saúde mental dos internos. (Os recursos públicos vêm dos Ministérios da Saúde, Desenvolvimento Social e, principalmente, do Ministério da Justiça, que em 2018 destinou R$ 87 milhões para comunidades terapêuticas).
- O resultado da inspeção nos aponta para a resistência e permanência do sistema manicomial no Brasil, quando a Lei da Reforma Psiquiátrica estabelece que pessoas em sofrimento mental devem receber tratamento ambulatorial e não exclusão e segregação.
Em conclusão, a ausência de uma fiscalização permanente nas comunidades terapêuticas, aliada ao interesse por lucros que vê no financiamento público a essas comunidades uma oportunidade, propiciam a reprodução do modelo manicomial, mesmo contra as disposições expressas da Lei da Reforma Psiquiátrica.
É necessário enfrentar essas questões. É preciso denunciar a violação dos direitos humanos às instâncias de sua proteção. O Brasil, inclusive, é reincidente na permissividade a crimes contra pessoas institucionalizadas, pois, em 2006 foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pela morte de Damião Ximenes Lopes em 1999, por espancamento, em uma clínica psiquiátrica de Sobral, no Ceará.
Diante deste novo Relatório, a ONG Conectas solicitou, em julho de 2018, uma audiência à Corte Interamericana de Direitos Humanos, na expectativa de formalizar novas denúncias tendo como base as provas coletadas durante a inspeção.
De outro lado, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal interpôs, em 2015, Ação Civil Publica para por fim ao financiamento público aos abrigos, obtendo uma decisão judicial liminar favorável ao seu pedido. No entanto, no início de 2018 outra decisão judicial revogou a liminar obtida. A Procuradora responsável pela Ação, Débora Duprat, já afirmou publicamente que o Ministério Público Federal seguirá recorrendo contra este tipo de financiamento.
É esse o estado de coisas que se configura na realidade brasileira quando o novo governo tomou posse, com um discurso de fortalecimento da institucionalização, apresentando projeto de reforma da política de saúde mental em que há, inclusive, um incremento nas verbas públicas destinadas aos tais abrigos.
Mesmo antes da apresentação do projeto, sobre o qual a psicanalista Ana Laura Prates Pacheco já se pronunciou para o Comuna Diversa (link), os discursos do novo governo, veiculados amplamente pela imprensa, apontavam para a desvalorização da função dos CAPS e da intenção de terceirização do atendimento através do fortalecimento das instituições ligadas a entidades religiosas.
O que o governo federal pretende é absolutamente contrário à orientação de abordagem terapêutica consagrada na Lei da Reforma Psiquiátrica. Este projeto fortalece a institucionalização das pessoas com sofrimento mental, incentiva a violação de seus direitos através de financiamento público e confere mais fôlego à perpetuação da prática manicomial.
É urgente nos posicionarmos e agirmos contra esta possibilidade, pois, “a indiferença também gera barbárie”

Imagem: Damião Ximenes Lopes. Morto por espancamento em um Hospital Psiquiátrico em Sobral, no Ceará, em 1999.
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