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“A indiferença também gera barbárie”. Uma avaliação da institucionalização atual

  • Gisele Fontes
  • 20 de fev. de 2019
  • 13 min de leitura

Na postagem anterior vimos o histórico da política de saúde mental no Brasil e as atrocidades cometidas inclusive contra crianças, que levaram à reforma psiquiátrica e à substituição do paradigma da institucionalização pelo paradigma da abordagem terapêutica do paciente mantido em convívio social.

Essa guinada em termos de políticas públicas de saúde mental se deve em grande parte à luta antimanicomial da sociedade organizada, pela garantia dos direitos de cidadania da pessoa com sofrimento mental, que, sendo uma pessoa livre, não pode ser encarcerada em razão da sua condição.

Isso porque, tanto a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência que no Brasil tem status de garantia constitucional (o sofrimento mental está incluído no rol das deficiências como doença mental), quanto à LBI e o ECA, garantem ao cidadão o direito de viver em comunidade e de não ser institucionalizado.

Porém, mesmo com a reforma psiquiátrica, há, ainda hoje, inúmeros abrigos, asilos, comunidades e hospitais psiquiátricos em funcionamento no país. Segundo o último relatório de gestão do SUS, referente ao ano de 2017, porém publicado apenas em março de 2018, que pode ser consultado aqui há, hoje, 159 Hospitais Psiquiátricos em funcionamento no país, que juntos perfazem um total de 25.126 leitos.

Quanto aos números de pessoas declaradas como “pessoa com deficiência” em situação de institucionalização, os dados mais recentes que temos sobre o assunto fazem parte do Censo SUAS (Sistema Único de Assistência Social) de 2016, que pode ser consultado aqui, que aponta o total de 4688 adultos e 808 crianças declaradas como pessoa com deficiência institucionalizados no SUAS, a absoluta maioria em abrigos de longa permanência, abrigos esses que chegam a contar com centenas de internos. Mais da metade desses internos já se encontram institucionalizados há mais de 5 anos. No caso dos menores de idade, 62% das crianças e adolescentes com deficiência estão institucionalizados há mais de seis anos.

Essas instituições são alvo constante de denúncias de violação dos direitos humanos. A questão é simples - ao retirar o cidadão do convívio social e mantê-lo segregado, apartado da sociedade, há uma drástica redução do controle social, o que favorece que se cometa todo tipo de violência contra as pessoas institucionalizadas, não apenas no Brasil como no mundo todo, porque o modelo excludente e segregacionista permite essa prática onde quer que seja, tornando-a universal.

Em 2017, o Conselho Federal de Psicologia e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, conduziram inspeção em 28 estabelecimentos de institucionalização de pessoas com sofrimento mental, resultando em 2018 em um relatório de 150 páginas que retratam as mais diversas atrocidades cometidas contra pessoas institucionalizadas nos dias atuais. Leia o relatório completo aqui, mas se prepare psicologicamente antes de ler.

Nesta postagem transcrevemos apenas o resumo deste relatório, sem os detalhes, como um convite para que no próximo post possamos refletir se é possível que este modelo de política de saúde mental seja valorizado, como propõe e nos moldes que propõe o governo federal.

Eis o resumo:

“RESUMO EXECUTIVO

O presente relatório reúne os resultados da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas realizada em outubro de 2017, nas cinco regiões do Brasil, por iniciativa do Conselho Federal de Psicologia (CFP), o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) e a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal (PFDC/MPF).

A ação conjunta é inédita e mobilizou cerca de 100 profissionais, em vistorias que aconteceram simultaneamente em 28 estabelecimentos nos estados de Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Santa Catarina e São Paulo, além do Distrito Federal.

As equipes de inspeção foram compostas por membros do Ministério Público Federal, peritos de prevenção e combate à tortura, psicólogos e outros profissionais da saúde e do sistema de justiça – como conselhos de Medicina, de Serviço Social e de Enfermagem, além de Defensorias Públicas e seccionais da Ordem dos Advogados no Brasil.

A coleta de informações se deu, portanto, a partir dessa multiplicidade de olhares e envolveu vistorias dos espaços físicos, entrevistas com usuários, direção e equipes de trabalho, além da análise de documentos desses estabelecimentos – voltados especialmente à internação de usuários de drogas, embora novos públicos venham sendo incorporados, como idosos e pessoas com outros transtornos mentais, conforme apontaram as vistorias.

A proposta das visitas foi identificar situações concretas do cotidiano e das práticas adotadas nessas instituições. Desse modo, o relatório aqui apresentado não constitui uma amostra estatística e suas conclusões não devem ser generalizadas de maneira probabilística – o que requereria um trabalho de maior vulto e que, aliás, é dificultado dada a ausência de informações oficiais sobre o universo de comunidades terapêuticas no Brasil.

A sistematização das informações coletadas nos 28 estabelecimentos vistoriados busca, portanto, trazer um retrato do modo de atuação dessas instituições, permitindo um olhar geral, sem que se perca de vista as especificidades de cada local.

As informações coletadas estão apresentadas a partir de dez grandes áreas: caráter asilar desses estabelecimentos; uso de internações involuntárias e compulsórias; práticas institucionais (violação à liberdade religiosa, “laborterapia” e internações sem prazo de término, entre outros aspectos); equipes de trabalho; cotidiano e práticas de uso de força; internação de adolescentes; os chamados “novos usos” para as comunidades terapêuticas; infraestrutura; controle e fiscalização; assim como a origem dos recursos para o financiamento.

As análises estão fundamentadas em um amplo marco legal e normativo acerca dos direitos da pessoa com transtorno mental, de prevenção e combate à tortura, das políticas de drogas e dos princípios que pautam os direitos fundamentais estabelecidos pela Constituição Federal de 1988. Relatos de situações concretas identificadas durante as vistorias também integram o presente relatório. O objetivo não é a individualização de casos, mas ilustrar o cotidiano vivenciado nesses espaços de privação de liberdade, suas características e a complexidade de violações de direitos identificadas – conforme sintetizado a seguir.

Muros, trancas e restrições no acesso a meios de comunicação

Grande parte das comunidades terapêuticas visitadas tem o isolamento ou a restrição do convívio social como eixo central do suposto tratamento oferecido. Esse modelo viola o amplo conjunto de diretrizes que tratam dos direitos da pessoa com transtorno mental, incluindo os advindos do uso de álcool e outras drogas. A Lei no 10.216/2001, que instituiu a reforma psiquiátrica no Brasil, é clara ao apontar que o atendimento a essa população deve priorizar a inserção na família, no trabalho e na comunidade.

As vistorias a esses estabelecimentos identificaram que a configuração das comunidades terapêuticas como locais de asilamento passa por um conjunto de práticas e características que, individual e conjuntamente, trazem restrições à livre circulação e ao contato com o mundo exterior. Entre elas está a própria instalação em locais de difícil acesso e com a presença de muros, grades e portões – em alguns casos, também de vigilantes. É marca da maioria das instituições visitadas o impedimento à livre saída do estabelecimento e muitas recorrem à punição em caso de tentativa de fuga. Em algumas comunidades também foi constatada a prática de retenção de documentos e pertences de usuários, assim como de cartões bancários ou para o acesso a benefícios previdenciários.

As vistorias mostraram ser usual o controle de ligações telefônicas, bem como a violação de correspondências – o que fere os princípios de proteção da intimidade e da vida privada, estabelecidos pela Constituição, em seu art. 5o, incisos X e XII. Em São Paulo (SP), por exemplo, um interno da comunidade terapêutica Recanto da Paz informou que as conversas telefônicas não eram privadas e que, quando havia a tentativa de informar aos familiares a intenção de abandonar o estabelecimento – inclusive em razão de violações de direitos – a direção fazia contato com a família a fim de demovê-la da ideia. Em Betim (MG), um interno da comunidade Terra Santa informou que cartas destinadas a familiares só poderiam ser encaminhadas se previamente lidas pela direção.

Privação de liberdade

A Lei da Reforma Psiquiátrica define três modalidades de internação: involuntárias (sem o consentimento do usuário, a pedido de terceiro e realizada por um médico), compulsórias (determinadas pela Justiça) e voluntárias (com o consentimento do usuário). No caso das internações involuntárias – que além de laudo médico devem ser informadas ao Ministério Público em até 72 horas –, as vistorias identificaram em apenas duas das 28 comunidades terapêuticas visitadas o documento médico com a autorização para tais internações. Mesmo nessas unidades, foram encontrados problemas, entre os quais: a ausência de informações específicas e situações que permitiram ter dúvidas sobre as datas de chegada do interno à comunidade terapêutica, denotando, no mínimo, incompatibilidade nos dados apresentados. As vistorias apontaram que internações voluntárias também têm se dado ao arrepio da lei. O padrão, nos locais inspecionados, foi que não apresentassem laudos médicos, requeridos para essa modalidade de internação.

As inspeções mostraram ainda que algumas comunidades terapêuticas adotam a prática do “resgate” ou “remoção”: internamento forçado por meio de uma equipe que vai à residência da pessoa e a imobiliza, fazendo uso tanto de violência física quanto de contenção por meio da aplicação de medicamentos. Em algumas das unidades, foi informada a participação de outros internos na realização desse serviço, que está disponível em pelo menos nove das 28 instituições visitadas. A prática viola a determinação legal sobre a necessidade de laudo médico fruto de avaliação prévia e pode, inclusive, configurar crime de sequestro e cárcere privado qualificado, conforme o artigo 148 do Código Penal.

No que se refere às internações compulsórias, a inspeção nacional identificou que o Judiciário tem adotado essa prática em desconformidade com o que estabelece a legislação. Isso porque a única previsão no ordenamento jurídico brasileiro para que esse tipo de internação ocorra (e que, ainda assim, é alvo de questionamentos por se contrapor aos direitos das pessoas com transtornos mentais) está no Código Penal, ao designar que a internação possa ser utilizada como substituição de pena em casos em que o autor de um crime, após seu julgamento, seja considerado pela Justiça como inimputável. Trata-se, portanto, da chamada medida de segurança, representada na internação.

O que as inspeções revelaram, no entanto, é a existência de um contingente de usuários de drogas enviados a comunidades terapêuticas por determinação judicial com o objetivo de suposto tratamento de dependência química. Há decisões, inclusive, para que o poder público arque com os custos dessas internações, que, em muitos casos, não conta com prazo de término estabelecido – representando não apenas um subsídio público permanente a essas instituições, como, ainda mais grave, a perene privação de liberdade de determinada categoria de sujeitos.

As vistorias a esses estabelecimentos demonstraram, ainda, que a privação forçada de liberdade pode ocorrer mesmo em casos de internação voluntária. É que muitas comunidades terapêuticas oferecem facilidades para receber pessoas voluntariamente – como transporte e opções para o pagamento. Entretanto, tais facilidades desaparecem quando o interno manifesta o desejo de cessar o “tratamento”, momento em que inúmeros obstáculos lhe são impostos: multa por quebra de contrato, retenção de documentos, pressão sobre familiares, entre outros. Na prática, a internação – ainda que de caráter voluntário – pode vir a se caracterizar como privação de liberdade, dado que a pessoa perde o poder de decisão de encerrar o tratamento, conforme assegura a Lei 10.216/2001, art.7o.

Castigos, punições e indícios de tortura

Em 16 dos locais inspecionados foram identificadas práticas de castigo e punição a internos. Essas sanções variam entre a obrigatoriedade de execução de tarefas repetitivas, o aumento da laborterapia, a perda de refeições e a violência física. Também foram identificadas práticas como isolamento por longos períodos, privação de sono, supressão de alimentação e uso irregular de contenção mecânica (amarras) ou química (medicamentos) – todas elas podem ser caracterizadas como práticas de tortura e tratamento cruel ou degradante, de acordo com a legislação brasileira.

As sanções mais encontradas durante as vistorias foram aquelas de incremento do trabalho ou de realização de tarefas extras e aviltantes. No primeiro caso, se trata de aumento de tarefas cotidianas ou ligadas à manutenção do espaço físico; no segundo, da obrigação do cumprimento de tarefas repetitivas, em especial a prática de cópia de trechos bíblicos. Na comunidade terapêutica Fazenda Vitória, em Lagoa Santa (MG), por exemplo, internas relataram que entre as sanções recebidas em casos de “mau comportamento” estava a de copiar, por inúmeras vezes, do Salmo 119 da Bíblia. Nessa unidade, a lavagem de pratos e panelas durante uma semana também foi anunciada como uma das modalidades de punição.

As equipes de inspeção também colheram relatos do uso de isolamento físico ou confinamento dentro da própria comunidade terapêutica como forma de “tratamento” ou punição por desvio de comportamento. Nessas situações, o interno é mantido em quartos ou cubículos dentro da própria instituição, separado dos demais. Quatro dos estabelecimentos visitados informaram possuir quartos específicos para o isolamento. A violência física também foi apontada como prática, sobretudo em casos de tentativas de fugas, sendo relatados o uso de socos nos olhos e aquilo que os internos denominam “mata-leão”, conforme apontado nas vistorias às comunidades Crisameta (RJ) e Recanto da Paz (SP).

Esse tipo de sanção fere flagrantemente o art. 2o da Lei no 10.216/2001, segundo o qual a pessoa com transtorno mental – incluindo aqueles decorrentes do uso de álcool e outras drogas – deve ser respeitada e tratada com humanidade no interesse único e exclusivo de beneficiar a sua saúde. A prática afronta, ainda, o art. 20, inciso IV, da Resolução RDC no 29/2011 da Anvisa, que proíbe a aplicação de castigos físicos, psicológicos ou morais a internos em instituições que prestem serviços de atenção a pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas.

Violação à liberdade religiosa e à diversidade sexual

Em apenas quatro das 28 das comunidades terapêuticas visitadas, é possível afirmar que não foram presenciadas ou registradas restrições à liberdade religiosa. Em muitas há imposição de uma rígida rotina de orações e foram colhidos inúmeros relatos de obrigatoriedade de participação nas atividades religiosas, bem como a punição em casos de negativa – inclusive por meio do aumento da carga de “laborterapia”. As vistorias também apontaram casos em que internos de outras religiões eram coagidos a frequentar atividades da designação religiosa da comunidade terapêutica. Um dos entrevistados da comunidade Renascer, em São João Del Rei (MG), por exemplo, relatou que a instituição não aceitava culto a santos e que chegou a ter rasgada a imagem de Nossa Senhora Aparecida que guardava consigo.

No que se refere à diversidade sexual, os elementos colhidos nas entrevistas com usuários, equipes e diretores revelam que, em ao menos 14 das 28 instituições visitadas, não há respeito à diversidade de orientação sexual e de identidade de gênero. Os relatos indicaram tendência à repressão da expressão das sexualidades e seu tratamento como problemático. Por vezes, em geral em instituições de orientação religiosa, a identidade sexual foi associada ao “pecado”. Depoimentos nesse sentido foram colhidos nas comunidades terapêuticas visitadas em Castanhal (PA), Nísia Floresta (RN) e Bandeira do Sul (MG), entre outras.

“Laborterapia”: trabalhos forçados e sem remuneração

As equipes identificaram ser comum, na ampla maioria das comunidades terapêuticas visitadas, o uso da chamada “laborterapia”, na qual o trabalho seria empregado como ferramenta de disciplina – prática condenada pelos princípios da reforma psiquiátrica estabelecida no Brasil pela Lei no 10.216/2001.

A mão de obra de internos costuma ser usada para serviços de limpeza, preparação de alimentos, manutenção, vigilância e, em alguns casos, até mesmo no controle e aplicação de medicamentos em outras pessoas internadas. Entre os relatos, está o colhido em uma comunidade terapêutica no Rio Grande do Norte, onde internos estariam sendo utilizados como mão de obra não remunerada para a construção de uma casa de praia da proprietária do estabelecimento.

O conjunto de informações coletadas pela Inspeção Nacional indica que, da maneira como vem sendo utilizada por muitas comunidades terapêuticas, a chamada “laborterapia” encobre práticas de trabalho forçado e em condições degradantes – práticas que trazem fortes indícios de crime análogo à escravidão. Muitos relatos apontaram, inclusive, o uso de castigos e punições aos internos que se recusam a realizar tais atividades. Também pareceu evidente às equipes de inspeção que o uso da “laborterapia” busca, ainda, substituir a contratação de profissionais pelo uso de mão de obra dos internos – sem remuneração ou qualquer garantia trabalhista, em uma lógica de maximização do lucro.

Fragilidades nas equipes de trabalho

Além da substituição do trabalho formal e remunerado pelo que se denomina “laborterapia”, as vistorias mostraram a presença constante de um chamado trabalho “voluntário” que, sem configurar de fato essa modalidade, encobre violações aos direitos trabalhistas. A prática ocorre de duas formas principais: pelo recrutamento de profissionais sem remuneração; e pela permanência de ex-internos, que assumem tarefas como monitores ou obreiros, sem formalização dessas atividades.

Em 15 das 28 comunidades inspecionadas, houve menção à presença de voluntários – que, na grande maioria dos casos identificados, trocam trabalho por abrigo e alimentação. As condições dessa troca não estão registradas e, em geral, a situação de voluntariado não é oficializada – o que contraria a legislação na área, especialmente a Lei no 13.297/2016. Acerca da composição das equipes, é importante destacar não apenas os arranjos improvisados, mas a própria escassez de profissionais com capacidade de prover, de fato, atenção à saúde. A Lei da Reforma Psiquiátrica aponta que a internação de pessoas com transtornos mentais deve se dar em serviços que ofereçam assistência integral, incluindo “serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outros.”

Entretanto, o quadro encontrado nas comunidades terapêuticas inspecionadas foi de escassez de profissionais para a oferta dessa assistência: há poucos trabalhadores com formação na área de saúde e muitos “monitores” (internos que ganham a confiança da direção e passam a desempenhar, informalmente, atividades na instituição).

Internação de adolescentes

As inspeções identificaram internação de adolescentes em 11 das comunidades terapêuticas visitadas. Em outras duas instituições, havia crianças e adolescentes acompanhando mães que estavam internadas. Houve, por fim, a identificação de uma criança de 11 anos internada em uma comunidade terapêutica, por decisão judicial. Nas vistorias, constatou-se também que adolescentes e adultos dividem alojamentos e quartos. Em apenas duas instituições relatou-se que adolescentes ficam em casas ou quartos separados. Essa situação demonstra a ausência de cuidado às peculiaridades que devem marcar a atenção a esse grupo populacional.

O Ministério da Saúde, por meio da Portaria no 3.088/2011, determina que comunidades terapêuticas só podem acolher adultos (inciso II do art. 9°). Esse aspecto já caracterizaria a irregularidade das internações de adolescentes. Para além desse aspecto, entretanto, a manutenção de internos nessa faixa etária viola uma série de diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), visto que não são espaços adequados para o cumprimento de medida socioeducativa e, tampouco, estabelecimentos capazes de promover proteção integral a sujeitos em fase de formação.

De acordo com as equipes de inspeção, as comunidades terapêuticas visitadas não atendem às mínimas obrigações estabelecidas no art. 94 do ECA. Não observam garantias e direitos de adolescentes, não oferecem atendimento personalizado, não diligenciam pelo restabelecimento e preservação de vínculos familiares, nem sempre oferecem instalações físicas adequadas, não proporcionam escolarização e profissionalização, nem atividades culturais, esportivas e de lazer, entre outros.

É válido apontar ainda que as equipes de inspeção identificaram casos de internação de adolescentes por motivos que não estão relacionados ao uso de álcool e outras drogas – de maneira que as comunidades terapêuticas parecem estar cumprindo papel de isolamento do convívio social pelas mais diversas motivações. Em Itamonte (MG) uma interna – que, inclusive, é surda – contou ter sido internada por namorar um rapaz que fazia uso de álcool e, por essa razão, sua mãe decidiu encaminhá-la à comunidade terapêutica. A jovem narrou a condição de isolamento social a que vinha sendo submetida – visto que apenas se comunicava por meio da Língua Brasileira de Sinais (Libras) –, além de outras formas de tratamento cruel e desumano.

Financiamento público

Do total de 28 comunidades terapêuticas inspecionadas, 18 informaram receber algum tipo de recurso ou doação de órgãos públicos nas esferas municipal, estadual ou federal – denotando a presença desse tipo de estabelecimento no rol de entidades que prestam serviços ao poder público. Os documentos demonstraram que é prioritariamente por meio de recursos destinados a políticas sobre drogas que as comunidades terapêuticas vêm acessando recursos federais.

Ainda que haja, em alguns casos, previsões legais para tanto, o conjunto de informações coletadas permite questionar a capacidade desses estabelecimentos de prestar serviços que respeitem as linhas gerais das políticas voltadas à saúde e possam ser referendados pelo Estado a título de política pública.

É preciso lembrar, ainda, que qualquer destinação de recursos públicos deve contar com a fiscalização e acompanhamento das práticas desenvolvidas pelo destinatário dos recursos, o que não foi identificado nas vistorias. Os dados coletados pela inspeção nacional em comunidades terapêuticas apontam, portanto, que o financiamento indiscriminado de instituições dessa natureza acaba por resultar na destinação de recursos públicos a locais onde há violações de direitos.”

 
 
 

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