A regra é a diversidade. O padrão de normalidade é uma ficção. E eu posso provar.
- Gisele Fontes
- 11 de dez. de 2018
- 4 min de leitura
Todas as terapias e abordagens pedagógicas que têm por objetivo o desenvolvimento das habilidades e a “normalização dos comportamentos” das pessoas com deficiência, em regra, pautam as suas estratégias em modelos pré-estabelecidos de capacidade humana. O objetivo a alcançar é a funcionalidade modelo. A pessoa deve falar, andar, aprender, se comportar etc, o mais próximo possível do padrão estabelecido pelo modelo.
Porém, estabelecer esses modelos como padrões e objetivos a serem alcançados importa em um risco, qual seja, o risco de que no processo, deixemos de observar as múltiplas possibilidades da diversidade humana e nos concentremos nas “ausências de funcionalidade” que resultam da comparação entre o ser humano real e o modelo, o padrão de comportamento e de capacidade humana, que é colocado como padrão de normalidade
Quando nessa linha de entendimento, resta às pessoas com deficiência a busca por estratégias para suprimir tais comportamentos dissonantes e ausências de funcionalidade, ou mesmo a busca por estratégias para aproximar, ao máximo, o desempenho de uma pessoa com deficiência do desempenho “padrão” de uma “pessoa normal”.
Mas, afinal, de onde surgiu o modelo de comportamento e capacidade humana, estabelecido como “padrão de normalidade”? Será que surgiu de uma verificação quantitativa da população? Uma constatação de que, se há muito mais pessoas dentro desse padrão de comportamento e capacidade, é ele que deve ser considerado o padrão de funcionalidade, o “normal”?
Proponho, então, que examinemos o caso do Brasil para efeitos de exemplificação. Segundo o censo de 2010, 23.9% da população residente no Brasil apresenta alguma das situações classificadas como deficiência. Colocado dessa forma, essa porcentagem pode nos induzir à consideração equivocada de que, realmente, o conceito de normalidade decorre da constatação de que a maioria da população tem um mesmo “padrão de comportamento” e de aprendizagem, enquanto apenas uma minoria tem questões no desenvolvimento, no comportamento e na aprendizagem. Seria uma conclusão mais ou menos assim - já que a maioria da população tem um mesmo padrão capacidade e comportamento.
Há vários equívocos com esta conclusão e o primeiro deles é que o Censo de 2010 não considerou como deficiência o Transtorno do Espectro Autista - TEA, a neurose, a esquizofrenia e a psicose.
Não há estudos precisos sobre a prevalência do TEA no Brasil. O que está aparentemente convencionado é a extensão das conclusões do estudo epidemiológico realizado no ano de 2008 pelo Center of Deseases Control and Prevention, dos EUA, que estabeleceu a média de uma pessoa com TEA para cada 88 pessoas. Esse parâmetro estabelece um percentual de 10% da população, no Brasil.
Quanto à neurose, esquizofrenia e psicose, as políticas governamentais para doenças mentais estabelecem em 3% a população afetada, no Brasil, por algum sofrimento mental grave ou persistente, como a esquizofrenia, em 12% a população que demanda atendimento ambulatorial em razão de depressão e ansiedade, 9% a população de alcoólatras e 6% com sofrimentos psiquiátricos decorrentes do uso de álcool e drogas.
Apenas entre a população não quantificada pelo Censo de 2010, temos, portanto, um total de 63,9% de pessoas com algum tipo de característica ou comportamento que as distingue do entendido como comum, ou “normal”. Obviamente, há que se considerar que uma única pessoa possa apresentar mais de um comportamento ou característica “desviante”, mas, mesmo com esta consideração, também não foram incluídos neste rol, as pessoas com TDAH (5,8% da população), com algum dos transtornos de aprendizagem – dislexia (aproximadamente 10% da população brasileira, segundo a Associação Brasileira de Dislexia), discalculia (3 a 6% da população) e transtorno da expressão escrita - Disortografia (aproximadamente 5% da população) e transtorno misto (aproximadamente 7% da população).
Diante desse cenário, está provado que a maioria da população, em números absolutos, é composta por grupos menores que apresentam características especificas de comportamento e capacidade, o que rechaça a conclusão de que expressões como “comportamento típico/neurotípico”, “pessoa normal/comum”, “padrão de normalidade” e outras de igual sentido, decorrem de meras considerações estatísticas, pois, como demonstrado acima, a maioria da população diverge do estabelecido como modelo.
Óbvio que, como dito antes, uma pessoa pode apresentar mais de uma situação “fora do padrão”. Mas os números são suficientemente vultuosos, para que percebamos que sim, a maioria absoluta da população não se encaixa no “modelo”, no “padrão” de comportamento e capacidade. Então como pode existir um padrão estabelecido a partir de uma quantidade de pessoas que não representa nem um terço da totalidade do grupo?
Comprovado que a regra da natureza é a diversidade humana e que “padrão de normalidade” de comportamento e capacidade é uma ficção, só nos resta esclarecer de onde veio essa ficção e a quem interessa preservá-la e reproduzi-la como se verdade fosse.
E esse é assunto para uma próxima postagem.
Recomendamos a leitura deste post.

Diana Gomez para Radical Beauty Project. / Facebook / Instagram
Descrição da foto: Homem com síndrome de Down maquiado como o personagem Coringa dos histórias em quadrinhos, desenhos animados e filmes. O rosto é branco, os cabelos, vermelhos. No olho esquerdo há a imagem de uma asa de morcego. A mão esquerda está cobrindo seu olho direito e nas costas da mão, lemos parte de uma onomatopeia que reproduz o suposto som de um golpe de luta.
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